No último mês de janeiro um grupo de 262 juristas lança um manifesto em defesa dos direitos trabalhistas no Brasil em declarada reação às sugestões de flexibilização vindas do setor empresarial. Em várias passagens, o texto demonstra uma clareza e lucidez que só não são maiores do que a ingenuidade explicitada em outros momentos.
O teor geral do documento restringe-se às fronteiras do pensamento reformista e, de determinada maneira, quase conservador. A "defesa da ordem jurídica" e o "pacto social" para oferecer solução à crise são as palavras chaves do discurso da carta. Ainda que, de uma forma geral, as idéias apresentadas pelos advogados, magistrados e promotores que a assinaram, possam parecer se encontrar dentro de um campo de idéias progressistas, ele não ultrapassa o discurso posto em movimento pela própria Constituição Federal. Sugere-se a "justiça social", a "reforma agrária", a "tributação das grandes fortunas", tudo isto, claro, dentro do Estado Social já posto.
A impressão que fica ao leitor mais atento é a de que estaríamos caminhando muito bem para a efetivação de todas estas bandeiras, não fosse a "pedra no caminho" que é a atual crise econômica. De que, com os devidos esforços sociais (aí inclusos não só os movimentos sociais, mas as próprias empresas) e governamentais, em um futuro indeterminado, estaríamos alcançando uma "distribuição de renda" mais justa, mais igualitária (o que é diferente de plenamente justa e igualitária).
A passagem do texto que mais chama atenção para este aspecto é: "Uma crise econômica, vista do ponto de vista estrutural, se concretamente existente, somente pode ser superada por meio de um autêntico pacto social, que envolva os setores da produção, do trabalho e do consumo, gerenciado pelo Estado, e no qual se priorize a construção da justiça social" (grifos nossos). O espírito da peça demonstra-se, então, com uma determinada "nostalgia do quê nunca aconteceu". Pelo menos, nunca aconteceu por aqui.
A idéia do "pacto social" "gerenciado pelo Estado", quase que o coração pulsante do Estado Social (ou de Bem Estar Social), no fim das contas, nunca encontrou terreno fértil no Brasil. Aliás, seria um exageiro dizer que este modelo encontrou plenitude em qualquer lugar além das nações desenvolvidas da América do Norte e da Europa. Essencialmente limitado, o Estado de Bem Estar Social vigorou por pouco mais de três décadas em uma minoria pífia de países. Ainda assim, sua experiência e o crescimento econômico que a acompanhou foram suficientes para alimentar a ilusão de incontáveis pessoas que acreditam ser possível superar as desigualdades do capitalismo por dentro do próprio capitalismo. Ou seja, para superar o abismo social provocado pelo Capital, pelo Estado e pelo trabalho assalariado, deveríamos utilizarmos-nos, justamente, do Capital (regulado pelo órgão estatal e voltado para um mercado bem administrado), do Estado (de Bem Estar Social) e do trabalho assalariado (por exemplo, o pleno emprego).
A crise desencadeada pelo próprio capitalismo no fim da década de 1960 demonstrou que a data de validade do Estado Social era mais curta do que se esperava. A política neo-liberal entra em cena com força avassaladora e ataca todas as garantias da classe trabalhadora. Tanto as garantias que foram efetivadas (em sua maioria nas mãos dos trabalhadores de países desenvolvidos), quanto as que nunca chegaram a existir de fato (vide os trabalhadores brasileiros e o salário mínimo estipulado pela Constituição de 1988). Ainda assim, o discurso do Estado Social continua com força no imaginário "progressista". Uma força idealista, claro, já que aefetividade de uma economia deste porte em todas as nações do mundo é mais distante da realidade do quê a chance dos chimpanzés montarem uma bomba atômica. A questão é: para quê os cimpanzés iriam querer uma bomba atômica e para quê o Capital iria querer igualdade entre as nações? Ora, é a partir da própria desigualdade que ele consegue se valorizar.
Os juristas brasileiros, no entanto, surpreenderam com este documento, isso levando em conta que encontramos, no país, exemplares entre os mais conservadores desta categoria (não precisa nem lembrar que temos um Gilmar Mendes no STF, uma das Cortes Constitucionais mais retrógradas do mundo). Em algumas passagens, como a que serve de título para este artigo, colocam-se frontalmente contra a política do Capital para a crise. Como não poderia deixar de ser, recusam, totalmente, a possibilidade de qualquer flexibilização dos direitos dos trabalhadores. Ainda que com uma concepção de fundo equivocada (a de que o direito cumpre, entre nós, um "papel civilizatório"), defendem garantias das quais os trabalhadores não podem abrir mão.
A surpresa vai ser ainda maior quando chegarmos a ver uma carta assinada por mais de 200 juristas declarando que a solução para a "justiça social" não é a regulação do Capital, nem a defesa da "ordem jurídica"; e sim a defesa da emancipação humana, da superação cabal do capitalismo e da construção de uma ordem social harmônica, onde os homens possam, de fato, e não apenas nas leis, desenvolver suas plenas capacidades humanas.
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